About @renatagames

eu não estou aqui

É Tudo Verdade!

O festival de documentários É Tudo Verdade (atentem para o questionamento implícito no nome do festival!) está com “sessões online” durante a quarentena! Tem alguns clássicos do documentário brasileiro dos últimos vinte e poucos anos, como, por exemplo, A Negação do Brasil (2000, BRA), de Joel Zito Araujo, sobre “as lutas dos atores negros pelo reconhecimento de sua importância na história da telenovela brasileira”. Também está disponível A Pessoa É Para o Que Nasce (1998, BRA), de Roberto Berliner, muito premiado, mas também muito criticado, pela maneira como, segundo alguns, objetifica as três personagens cegas do filme. Outro que vale destaque é Nós Que Aqui Estamos, Por Vós Esperamos (1998, BRA), de Marcelo Masagão, feito exclusivamente com imagens de arquivo, todo digital, o que, na época era praticamente inédito (vocês, jovens gafanhotos, não viveram pra ver a briga que era no final dos anos 90, entre o cinema-película e o vídeo/digital, que era considerado “menor” pelos puristas do cinema…Hoje, é difícil até lembrar que houve esse debate, que meio que sumiu do mapa depois que a tecnologia digital conseguiu criar câmeras de altíssima definição…)

E eu, que não sou festival, mas sou a professorinha, vou aproveitar para indicar um dos maiores clássicos da história do documentário brasileiro, que está disponível no YouTube 0800 (rs): Cabra Marcado para Morrer, do grande mestre Eduardo Coutinho. Vou deixar a sinopse aí embaixo para vocês verem como o filme é, infelizmente, muito atual…

Em 1962, o líder da liga Camponesa de Sapé (PB), João Pedro Teixeira, é assassinado por ordem de latifundiários. Um filme sobre sua vida começa a ser rodado em 1964, com a reconstituição ficcional da ação política que levou ao assassinato, e com a produção do CPC da UNE e do Movimento de Cultura Popular de Pernambuco, e direção de Eduardo Coutinho. As filmagens com a participação de camponeses do Engenho Galileia (PE) e da viúva de João Pedro, Elizabeth Teixeira, são interrompidas pelo Golpe Militar em 1964. Dezessete anos depois, em 1981, Eduardo Coutinho retoma o projeto e procura Elizabeth Teixeira e outros participantes do filme interrompido, como o camponês João Virgílio, também atuante em ligas. O tema central passa a ser a história de cada um deles que, estimulados pela filmagem e revendo as imagens do passado, elaboram para a câmera os sentidos de suas experiências. João Virgílio conta a tortura e a prisão que sofreu neste período. Enquanto Elizabeth, que havia mudado de nome e vivia refugiada numa pequena cidade da Bahia com apenas um de seus dez filhos, emerge da clandestinidade e reassume sua identidade. Ela também fala de sua prisão e do reencontro com os filhos, antes dispersos por várias cidades do Brasil, e da tentativa de reconstituir suas vidas. Após a morte de seu marido, Elizabeth liderou a liga por um determinado período de tempo, porém, não dera continuidade à luta na qual seu marido se dedicara. O exército, por sua vez, invadiu a Galileia a procura de três camponeses e das pessoas que trabalhavam nas filmagens do longa metragem, pois, acreditavam ser estrangeiros revolucionários que apoiavam os ideais dos camponeses. Levaram todo o material utilizado nas filmagens de Cabra marcado para morrer, e nessa invasão, alguns dos integrantes do elenco do filme foram presos.

Pré-cinemas e Primeiro Cinema

Pessoas, enquanto separo aqui um textinho para aqueles que quiserem já se debruçar sobre a história do Primeiro Cinema – os primeiros vinte anos desde a criação do cinematógrafo até a sistematização dos principais mecanismos de linguagem e narrativa do cinema “canônico” – coloco aqui um marco desse momento histórico, o filme francês Le Voyage dans la Lune, do cineasta George Méliès.

Reparem como a linguagem do filme é ainda diferente daquela a que estamos acostumados até hoje: a mise-en-scène é teatral, a decupagem/planos de câmera são todos abertos, enquadrando a cena inteira, que se desenvolve como se em esquetes e a montagem praticamente só cola uma “esquete” na outra. Tem uma exceção na montagem, quem consegue detectá-la? (Não deixem de clicar nos links deste texto, que leva a outros vídeos muito explicativos sobre esses conceitos fundamentais para a compreensão da linguagem audiovisual!)

Tecnologias Audiovisuais em tempos de Covid-19

Aside

Olá, pequenos gafanhotos! Resolvi ressuscitar este blog, que estava encostado num canto do ciberespaço. Estamos em distanciamento social, mas isso não quer dizer que não possamos, ou melhor, devamos praticar a proximidade emocional. Então, proponho que fiquemos conversando por aqui e, quem sabe, outros canais neste grande mundo online, no qual pretendo ir colocando alguns conteúdos relacionados ao nosso componente de Tecnologias Audiovisuais. Mas lembrem-se, nada disto aqui é atividade do componente em si, são conteúdos complementares, que poderão adiantar alguns temas que, quando toda essa loucura acabar, abordaremos presencialmente, como deve ser.

Assim, quem não conseguir acessar tudo – seja porque a internet não ajuda, seja porque não tá com cabeça, seja porque for – não se sinta culpado ou cobrado. Mas se vocês conseguirem acompanhar, será bacana para todos. Vou postar assuntos diretamente relacionados ao nosso componente de Tecnologias Audiovisuais, mas que talvez interessem a alunos de outros componentes (que tenham feito ou um dia façam TevAv!) e assuntos mais gerais.

Bem vindas, bem vindos, bem vindes! Daqui a pouco começo com conteúdos!



Um textão sobre franquias em tempos de Stá Uós

(um post de Facebook trazido pra cá, pra não se perder com o tempo)

A maioria do que se produz, vende e consome na indústria contemporânea do entretenimento é fruto de acordos espartanos de “propriedade intelectual”: cria-se – ou, mais normalmente, compra-se – um “storyworld” e delimita-se seu copyright com direito a guardas de fronteira armados até os dentes, para impedir que a concorrência o invada. Hollywood, portanto, divide-se (literalmente!) entre quem é ~dono~ de Star Wars, ~dono~ do Homem Aranha, ~dono~ dos X-men e por aí vai.

A partir daí, o “storyworld” é expandido até quase o infinito em “sequels”, “prequels”, “spin-offs”, “remakes”, “what-ifs” e a porra toda até ficar claro (para alguns, apenas) que tão frescando com a sua cara. Isso porque é muito mais barato requentar esses “storyworlds” do que investir na criação de novos (e, mesmo assim, uns “novos” são muuuuito parecidos com outros já conhecidos, mas da concorrência). Assim, a cada novo filme, uma história 90% igual, mas com novos efeitos, figurinos e, de preferência, uma nova tecnologia pra fazer o ingresso subir 50% (ou mais). Ah, e, claro, novas versões de bonequinhos para refletir as mudanças visuais.

Quanto mais previamente conhecida a “PI”, melhor, pois aí já garante um público cativo, que, por algum motivo que talvez só um remake de Adorno e Horkheimer conseguisse explicar, parece ser capaz de comprar tudo o que for vendido sobre aquele “mundo”: TUDO, de geniais fantasias até supositório d’A Força (vire um jedi com o poder do seu fiofó).

Isso funciona para o cinema, para séries (que vão sendo enxertadas de bobagens enquanto houver público) e sobretudo para games, chegando a um ponto em que se criou uma cultura que não apenas tolera, mas espera ansiosamente pelo prolongamento da franquia (um nome que, por ser o mesmíssimo que caracteriza o modelo de negócios de coisas como o McDonald’s, já deveria deixar clara a picaretagem da coisa). Aliás, o sonho doirado da indústria do entretenimento é a total “sinergia” entre todos esses produtos, naquilo que eles chamam de “transmídia”, mas que eu prefiro chamar de picaretagem mesmo.

Para que isso funcione, um agente da cadeia de produção e consumo é fundamental: o fã. Sem pessoas que cultuam cegamente uma ~franquia~ eles não conseguem produzir séries infinitas de filmes requentados – muitas vezes com subpartes tão fakes que só dá mesmo é pra morrer de rir (como Saga Crepúsculo parte 5.1 e 5.2) – e seus respectivos acompanhamentos. Assim, pegaram a cultura geek/nerd e a elevaram a um patamar “cult” de forma completamente acrítica e, com isso, ganharam importantes parceiros de marketing que, mais do que trabalhar de graça, pagam pra trabalhar.

Então, sem querer melar a histeria de vocês – ou querendo um pouco, hahaha – a “chata” que já quitou todas as prestações do puxadinho dentro de mim e é capaz de farejar servidão travestida de escolha melhor do que tubarão farejando sangue n’água vem por meio desta relembrar Deleuze, quando esse francês pentelho e maravilhoso nos pede para ficar atentos ao que somos levados a servir (eu, inclusive). Porque não é que não haja potência no exercício do “fandom” (que, em português, se traduz sintomaticamente como “fanatismo”). É que a fronteira entre qualquer potência e a imbecilidade é tênue e movediça. Que a força de ser menos rebanho esteja conosco (and may the bashing begin – supondo que alguém sobreviveu até aqui, hahaha).

Conjunturas, poemas e o velho ódio de classe

Blog da Boitempo

mauro iasi brecht[Ilustração de Ricardo Bezerra, para a peça “O patrão cordial”, da Companhia do Latão]

Por Mauro Luis Iasi.

Um vídeo com uma análise de conjuntura realizada na abertura do Congresso da CSP-Conlutas, em junho deste ano, que terminava com um poema de Bertolt Brecht (“Perguntas a um bom homem”), causou frisson nas hostes da extrema-direita.

Não foi a análise de conjuntura em si, coisa mais complexa e que exige certa cultura política, mas o poema citado ao final que despertou a ira dos conservadores, atentos ao espaço virtual da luta de classes.

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Red stack attack! Algoritmos, capital e a automação do comum

(Tradução minha, autorizada pela autora. Original: https://www.academia.edu/8430149/Red_Stack_Attack_Algorithms_Capital_and_the_Automation_of_the_Common)

Red stack attack! Algoritmos, capital e a automação do comum

Tiziana Terranova

Algoritmos, capital e automação

Olhando para os algoritmos sob a perspectiva da construção de uma nova racionalidade política em torno do conceito de “comum” significa ocupar-se das maneiras como os algoritmos estão profundamente implicados nas mudanças profundas dos processos de automação. A automação é descrita por Marx como um processo de absorção pela máquina das “forças produtivas gerais do cérebro social, tais como o saber e as habilidades” (Marx 1973, 694), as quais, assim, aparecem como um atributo do capital, em vez de produtor do trabalho social. Observando a história da implicação entre capital e tecnologia, fica clara a forma como a automação evoluir para além do modelo termodinâmico das primeiras linhas de montagem, rumo ao modelo das redes eletro-computacioniais do capitalismo contemporâneo. É possível, portanto, compreender os algoritmos como parte de uma linha genealógica que, como coloca Marx no “Fragmento sobres as máquinas”, começando com a adoção da tecnologia pelo capitalismo como capital fixo, empurra-a através de inúmeras metamorfoses “cuja das quais a última é a máquina ou, melhor dizendo, um sistema automático da maquinaria (…) posto em movimento por um autômato, por uma força motriz que se movimenta por si mesma” (Marx). O autômato industrial era claramente termodinâmico e deu lugar a um sistema “consistindo em numerosos órgãos mecânicos e intelectuais, de modo que os próprios trabalhadores são definidos somente como membros conscientes dele” (Marx). O autômato digital, contudo, é eletro-computacional, coloca a “alma para trabalhar” e envolve primariamente o sistema nervoso e o cérebro, abrangendo possibilidades de virtualidade, simulação, abstração, feedback e processos autônomos” (Fueller, 2008: 4; Berardi). O autômato digital se desdobra em redes que consistem em conexões eletrônicas e nervosas, de modo que os próprios usuários são colocados como relays semi-automáticos de um fluxo incessante de informação. É nessa assemblage maior, portanto, que os algoritmos precisam ser localizados quando discutimos os novos modos de automação.

Citando um livro didático de ciência da computação, Andrew Goffey descreve o algoritmo como “o conceito unificador para todas as atividades nas quais se envolvem os cientistas da computação… e a entidade fundamental com as quais estes operam” (Goffey, 2008: 15). Um algoritmo pode ser provisoriamente definido como a “descrição do método pelo qual uma tarefa pode ser realizada…” através de sequências de passos ou instruções, conjuntos de passos ordenados, que operam sobre dados e estruturas computacionais. Dessa forma, um algoritmo é uma abstração, “e tem uma existência independente daquilo que cientistas da computação gostam de chamar de “detalhes de implementação”, ou seja, sua materialização em uma linguagem de programação particular para uma arquitetura maquínica/computacional” “Goffey, 2008: 15). Podem estender-se em complexidade desde o mais simples conjunto de regras capazes de serem descritas em linguagem natural (como aquelas usadas para gerar padrões coordenados de movimento em ‘smart mobs’) às formulas matemáticas mais complexas, envolvendo todo tipo de variável (como o famoso algoritmo Monte Carlo, usado para resolver problemas de física nuclear e posteriormente também aplicado para o mercado financeiro e, hoje, ao estudo de processos tecnológicos não-lineares de difusão). Ao mesmo tempo, para funcionar, algoritmos precisam fazer parte de agenciamentos que incluem hardware, dados, estruturas de dados (como listas, databases, memoria etc), comportamentos e ações dos corpos. Para que o algoritmo se torne software social, de fato, “ele precisa obter seu poder como artefato e processo social ou cultural através de uma acomodação cada vez maior aos comportamentos e corpos que acontecem e estão do lado de fora” (Fuller, 2008: 5).

Além do mais, uma vez que algoritmos contemporâneos tem sido mais e mais expostos a conjuntos de dados cada vez maiores (e, em geral, a uma entropia crescente no fluxo de dados, também conhecida como Big Data), ele têm também se tornado, de acordo com Luciana Parisi, algo além de meras sequências de instruções a serem seguidas: um volume infinito de informação interfere e reprograma procedimentos algorítmicos… e os dados produzem regras estranhas” (Parisi 2013, X). Fica claro a partir deste resumo que os algoritmos não são um conjunto homogêneo de técnicas ou que garantem “a execução infalível e automatizada da ordem e do controle” (Parisi, 2013, IX).

Do ponto de vista do capitalismo, contudo, algoritmos são sobretudo uma forma de “capital fixo”, ou seja, apenas um meio de produção. Eles codificam uma certa quantidade de saber social (abstraído daquele elaborado por matemáticos, programadores, mas também pela atividade dos usuários), mas não tem valor em si. Na atual economia, eles tem valor apenas enquanto possibilitarem a conversão desse saber em valor de troca (monetização) e sua (exponencialmente crescente) acumulação (o quase-monopólios titânicos da Internet social). Enquanto constituem capital fixo, algoritmos como o Page Rank, do Google e o Edgerank, do Facebook, se mostram “como um pressuposto diante do qual o poder valorizador da capacidade de trabalho individual desaparece como algo infinitamente pequeno” (Marx) e é por isso que demandas por retribuição individual pelo “trabalho grátis” dos usuários não cabem. Fica claro que, para Marx, o que precisa ser compensado não é o trabalho individual do usuário, mas um poder muito maior de cooperação social assim desencadeado e que essa compensação implica uma transformação profunda sobre a posse que esta relação social a que chamamos economia capitalista tem sobre a sociedade.

Do ponto de vista do capital, portanto, algoritmos são apenas capital fixo, ou seja, meios de produção com a finalidade de conseguir retorno econômico, mas isso, como no caso de todas as técnicas e tecnologias, é tudo o que são. Marx explicitamente afirma que, mesmo quando o capital apropria a tecnologia como a forma mais eficiente de subsunção do trabalho, isso não é tudo o que se pode dizer sobre ela. Sua existência como maquinaria, ele insiste, não é “idêntica à sua existência como capital e, assim, não se segue de maneira nenhuma que a subsunção à relação social do capital seja a melhor e mais adequada relação social de produção para a aplicação da maquinaria” (Marx). É essencial lembrar que o valor instrumental que os algoritmos têm para o capital não exaurem o “valor” da tecnologia em geral ou de algoritmos em particular, ou seja, sua capacidade de expressão não apenas “valor de uso”, nas palavras de Marx, mas também valores estéticos, existenciais, sociais e éticos. Não foi esse embate entre a necessidade do capital de reduzir o desenvolvimento de software ao valor de troca, marginalizando, assim, os valores estéticos e éticos da criação, o que empurrou Richard Stallman e incontáveis hackers e engenheiros para o movimento do Software Livre? O entusiasmo que anima os encontros e espaços hackers não vem da energia liberada do constrangimento de ter que “trabalhar” para uma empresa para se manter fiel à sua própria estética e ética da codificação?

Ao contrário de algumas variantes do marxismo, que tendem a identificar a tecnologia completamente com “trabalho morto”, “capital fixo” ou “racionalidade instrumental” e, portanto, com controle e captura, é importante lembrar o quanto, para Marx, a evolução da maquinaria também indexa um nível de desenvolvimento produtivo que é desencadeado, mas nunca totalmente contido pela economia capitalista. O que interessa a Marx (e o que torna seu trabalho ainda relevante àqueles que buscam um modo de existência pós-capitalista) é a maneira como ele afirma que a tendência do capital de investir na tecnologia para automatizar e, portanto, reduzir o custo do trabalho ao mínimo possível potencialmente liberta um “excedente” de tempo e energia (trabalho) ou um excedente de capacidade produtiva com relação ao básico, importante e necessário trabalho de reprodução (uma economia global, por exemplo, deveria produzir antes de tudo riqueza suficiente para alimentar, vestir, curar e dar abrigo a todos os membros da população planetária). Contudo, o que caracteriza uma economia capitalista é o fato de que esse excedente de tempo e energia não é simplesmente lançado, mas deve ser constantemente reabsorvido no ciclo de produção de valor de troca, que leva à crescente acumulação de riqueza pelos poucos (o capitalista coletivo) às custas dos muitos (as multidões).

A automação, portanto, quando vista sob o ponto de vista do capital, deve sempre ser equilibrada com novas maneiras de controle, ou seja, deve absorver e exaurir o tempo e a energia por ela liberados. Deve necessariamente produzir pobreza e stress onde deveria haver riqueza e lazer. Deve fazer do trabalho direto a medida de valor, mesmo quando estiver claro que são a ciência, a tecnologia e a cooperação social o que constitui a fonte de produção de riqueza. Leva inevitavelmente, portanto, à destruição periódica e generalizada da acumulação de riquezas, na forma de esgotamento psíquico ou da destruição física da riqueza criada, e à catástrofe ambiental. Cria fome onde deveria haver saciedade, coloca lado a lado o banco de alimentação e a opulência dos super-ricos. É por isso que a noção de um modo de existência pós-capitalista precisa se tornar verossímil, ou seja, precisa se tornar o que Maurizio Lazzarato descreveu como um foco autônomo e duradouro de subjetivação. O que um comunismo pós-capitalista pode assim almejar é, não apenas a melhor distribuição as riquezas, comparada à que temos hoje, que é insustentável, mas também a reinvindicação do “tempo livre”, ou seja, de que esse tempo e energia liberados pelo trabalho [automatizado] sejam empregados no desenvolvimento e na problematização da noção mesma do que é “necessário”.

A história do capitalismo mostrou que a automação em si não reduziu nem a quantidade, nem a intensidade do trabalho requerida pelos patrões e capitalistas. Ao contrário, na medida em que a tecnologia é apenas um meio de produção para o capital, nos lugares em que pôde usar outros meios, ele não inovou. Por exemplo, não parece que as tecnologias de automação industrial usadas nas fabricas tenha vivido mudanças significativas recentemente. A maior parte do trabalho industrial ainda hoje é essencialmente manual, automatizado apenas no sentido de estar ligado à velocidade das redes eletrônicas de prototipagem, marketing e distribuição e é economicamente sustentável apenas através de meios políticos, ou seja, através da exploração das diferenças geopolíticas e econômicas (arbitragem) numa escala global e pelo controle de fluxos migratórios através de novas tecnologias de fronteira. O estado das coisas na maior parte das indústrias hoje em dia é de exploração intensificada, o qual produz um modo empobrecido de produção de massa e de consumo, que é danoso para o corpo, a subjetividade, as relações sociais e o meio ambiente. Como Marx colocou, o tempo excedente liberado pela automação deveria permitir uma mudança na definição mesma do que é ‘humano’, de modo que à nova subjetividade seja permitido voltar ao trabalho requerido para redefinir o que é necessário e o que é preciso. Portanto, não é simplesmente o caso de se defender um “retorno” a tempos mais simples, mas, ao contrário, de reconhecer que plantar alimentos e alimentar populações, construir abrigos e moradias adequados, ensinar e pesquisar, cuidar das crianças, dos doentes e dos velhos requer a mobilização de invenção e cooperação social. O processo todo transforma-se, assim, da produção dos muitos para os poucos, impregnado de pobreza e stress, num processo em que os muitos redefinem o sentido do que é necessário e valioso, enquanto inventam maneiras de consegui-lo. Isso corresponde, em certo sentido, à noção de ‘commonfare’, da forma como foi recentemente elaborada por Andrea Fumagalli e Carlo Vercellone, implicado, nas palavras deste último, “a socialização dos investimentos, do dinheiro e da questão de modos de gerenciamento e organização, que permitam uma reapropriação autêntica e democrática das instituições do Welfare (…) e da reconstrução ecológica de nosso sistema de produção” (Vercellone, no prelo, Fumagalli, 2014). Devemos perguntar, portanto, não apenas como a automação algorítmica opera hoje (sobretudo em termos de controle e monetização, alimentando a economia do debito), mas também que tipo de tempo e energia ela subsome e como elas podem ser colocadas para trabalhar em favor de agenciamentos sociais e políticos diversos – autônomos, não subsumidos ou sujeitos à pulsão capitalista pela acumulação e a exploração.

Red Stack: dinheiro virtual, redes sociais e bio-hipermídia

Numa intervenção recente, o teórico de mídias digitais e cientista político Benjamin H. Bratton afirmou que estamos testemunhando a emergência de um novo nomos na terra, na qual velhas divisões geopolíticas atreladas à soberanias territoriais se intersectam ao novo nomos da Internet e a novas formas de soberania que se estendem no espaço eletrônico (Bratton, 2012). Esse novo nomos heterogêneo envolve a sobreposição de governos nacionais (China, EUA, Uniao Europeia, Brasil, Egito e afins), organismos transnacionais (o FIM, a OMC, os bancos europeus e ONGs de diversos tipos) e corporações como Google, Facebook, Apple, Amazon etc, produzindo padrões diversos de acomodação mútua, marcados por momentos de conflito. A partir da estrutura organizacional das redes de computadores “ou do modelo OSI, no qual o stack TCP/IP e a própria internet se baseiam diretamente”, Bratton criou o conceito e/ou protótipo da “pilha” (stack) para definir a característica do potencialmente novo nomos da terra, ligando tecnologia, natureza e o humano (Bratton, 2012). A pilha/stack suporta e modula um tipo de ‘cibernetica social’ capaz de compor “tanto equilíbrio quanto emergência”. Como “megaestrutura”, a pilha/stack implica a “confluência de um sistema de sistemas interoperáveis … (confluence of interoperable standards-based complex material-information system of systems), organizados a partir de uma seção vertical de um modelo topográfico de camadas e procolos… composto igualmente de camadas sociais, humanas e “analógicas” (fontes de energia ctônica, gestos, afetos, usuários-actantes, interfaces, cidades e ruas, cômodos e apartamentos, invólucros orgânicos e inorgânicos) e camadas informacionais, não-humanas, computacionais e digitais (múltiplos cabos de fibra óptica, datacenters, databases, protocolos e padrões de dados, redes de escala urbana, sistemas integrados, tabelas de endereçamento universais)” (Bratton, 2012).

Nesta seção, a partir do protótipo político de Bratton, gostaria de propor o conceito de “Red Stack” (“pilha vermelha”???), ou seja, um novo nomos para o comum pós-capitalista. Materializar o “red stack” implica envolvimento com (pelo menos) três níveis de inovação sócio-técnica: dinheiro virtual, redes sociais e bio-hipermídia. Deve-se compreender que esses três níveis, conquanto “empilhados”, interagem transversalmente e de forma não linear. Constituem uma forma possível de pensar a infraestrutura de autonomização que liga tecnologia e subjetivação.

Dinheiro virtual

A economia contemporânea, como afirmam Christian Marazzi e outros, é fundada numa forma de dinheiro transformado numa série de signos, sem nenhum referente fixo no qual se ancorar (como o ouro), dependente explicitamente da automação computacional de modelos de simulação, telas com exibição automatizada de dados (índices, gráficos etc) e transações algorítmicas/“algo-trading” (transações bot-to-bot) como seu modo emergente de automação (Marazzi). Como também coloca Toni Negri, “o dinheiro, hoje – como maquina abstrata – adotou a função peculiar de medida suprema dos valores extraídos da sociedade na subsunção real desta sob o capital” (Negri, 2014b). Uma vez que a propriedade e o controle de dinheiro-capital (diferente, como nos lembra Maurizio Lazzarato, do dinheiro-salário por sua capacidade de ser usado não apenas como meio de troca, mas como meio de investimento, empoderando certos futuros em lugar de outros) são cruciais para a manutenção das população sob à atual relação de poder, como podemos transformar dinheiro financeiro em dinheiro do comum? Um experimento como o Bitcoin demonstra que, de certa forma, “o tabu sobre o dinheiro foi quebrado” (Jaromil 2013) e que, para além dos limites dessa experiência, bifurcações já estão se desenvolvendo em direções diversas. Que tipo de relações podem ser estabelecidas entre algoritmos de criação monetária e uma “prática constituinte que afirma outros critérios para a medição de riqueza, valorizando necessidades coletivas novas e velhas, fora da lógica financeira?” (Lucarelli 2014). As atuais tentativas de criação de novos tipos de criptomoedas devem ser julgadas, avaliadas e repensadas a partir de uma questão simples colocada por Andrea Fumagalli: a moeda criada está limitada a ser um meio de troca ou pode também afetar todo o ciclo de criação monetária – das finanças à troca? (Fumagalli, 2014). Encoraja a especulação e o acúmulo ou promove o investimento em projetos pós-capitalistas e facilita a libertação da exploração, a autonomia, a organização etc? Está cada vez mais claro que os algoritmos são uma parte essencial do processo de criação da moeda do comum, mas que eles também têm uma política (quais são as politicas de gênero da “mineração” individual de Bitcoins, por exemplo, ou do complexo saber tecnológico e da maquinaria implícita nessa “mineração”?).

Além do mais, o ímpeto da completa automação da produção monetária em busca de se escapar às falácias dos fatores subjetivos e das relações sociais pode causar a volta dessas relações na forma de negociação especulativa. Da mesma forma que o capital financeiro está ligado a um certo tipo de subjetividade (o predador financeiro narrado por Hollywood), uma forma autônoma de dinheiro deve ao mesmo tempo estar fincada e produzir um novo tipo de subjetividade, que não esteja não limitada ao universo hacker em si, mas orientada não à monetização e ao acúmulo e sim ao empoderamento da cooperação social. Outras questões que devem pautar o design da criação de uma moeda do comum são: é possível basear-se na atual financialização da Internet por corporações como o Google (e seus programas Adsense/Adword) para subtrair dinheiro do circuito de acumulação capitalista e transforma-lo em dinheiro capaz de financiar novas formas de “commonfare” (educação, pesquisa, saúde, meio ambiente etc.)? Que lições devem ser aprendidas a partir dos modelos de crowfunding e suas limitações no que diz respeito a novas formas de se financiar projetos autônomos de cooperação social? Como podemos aperfeiçoar e estender experimentos como aqueles levados adiante pelo movimento InterOccupy durante o furacão Katrina, ao transformar redes sociais em redes de financiamento coletivo, as quais podem servir para compartilhar não apenas informação, mas bens físicos (Common Ground Collective, 2012)?

Redes Sociais

Ao longo dos últimos dez anos, as mídias digitais tornaram-se sociais, o que introduziu uma inovação genuína em relação às formas previas de software social (listas de email, fóruns, domínios multiusuário etc.). Se as listas de email, por exemplo, baseavam-se nas na linguagem comunicacional de enviar e receber, as redes sociais e a difusão de plug-ins sociais (proprietários) transformaram as relações sociais em si no conteúdo de novos procedimentos computacionais. Ao enviar e receber uma mensagem, podemos dizer que os algoritmos operam foram da relação social em si e, sim, no espaço de transmissão e distribuição de mensagens; já as redes sociais operam diretamente dentro dela. De fato, tecnologias digitais e redes sociais atravessam as relações sociais em si, ou seja, eles as transformam em objeto discreto e introduzem relações suplementares (Stiegler 2013). Se compreendermos, com Gabriel Tarde e Michel Foucault, a relação social como algo assimétrico e que envolve pelo menos dois polos (um, ativo e o outro, receptivo) e caracterizada por um certo grau de liberdade, podemos compreender ações como curtir e ser curtido, postar e ler, ver e ser visto, marcar e ser marcado e mesmo comprar e vender como tipos de condutos que transindividuam o social (eles induzem passagens do pré-individual, através do individual, até o coletivo).

Nos sites de redes sociais e nos plug-ins sociais, essas ações tornam-se objetos técnicos distintos (botões, caixas de comentários, tags etc.), os quais se ligam a estruturas de dados subjacentes (por exemplo, o Social Graph, do Facebook) e ficam sujeitos ao poder de classificação dos algoritmos. Isso produz a modalidade espaço-temporal característica da sociabilidade digital hoje: o feed, um fluxo de opiniões, crenças, afirmações, desejos, customizado algoritmicamente, expresso em palavras, imagens, sons, etc. Muito recriminados na teoria crítica contemporânea por seu efeito supostamente homogeneizante, essas novas tecnologias do social, contudo, também abrem a possibilidade de experimentação com a interação muitos-para-muitos e, assim, com o próprio processo de individuação. Experimentos políticos (os vários partidos baseados na internet, como o Movimento 5 Estrelas, o Partido Pirata e o Partido X) partem dos poderes dessas novas estruturas sócio-técnicas para produzir processos massivos de participação e deliberação, mas, assim como o Bitcoin, também demonstram as limitações dos processos que ligam a subjetivação política à automação algorítmica. Eles funcionam, contudo, porque utilizam uma variedade de novos saberes e habilidades socializados (como construir um perfil, como cultivar um público, como publicizar eventos) e “soft skills” (competências transversais) de expressão e relacionamento (humor, argumentação, discussão), as quais não são boas ou ruins em si, mas apresentam uma série de affordances ou graus de liberdade de expressão para a ação politica que não podem ser deixadas nas mãos de monopólios capitalistas, mas podem migrar para novas plataformas e serviços. Uma vez que algoritmos, como dissemos, não podem ser separados de agenciamentos sociais maiores, sua materialização dentro do red stack envolve o sequestro das tecnologias de redes sociais, a invenção de novos tipos de plug-ins e a construção de novas plataformas a partir da bricolagem inventiva de tecnologias existentes, a performance de novas subjetividades através de um deslocamento (detournement) do letramento generalizado nas mídias sociais.

Bio-hipermídia

O termo bio-hipermídia, criado por Giorgio Griziotti, identifica a relação cada vez mais íntima entre corpos e dispositivos digitais que faz parte da difusão de smartphones, tablets e da computação ubíqua. Enquanto as redes digitais se movem da centralidade do desktop ou mesmo do laptop rumo a dispositivos cada vez menores e mais portáteis, uma nova paisagem sócio-técnica emerge ao redor dos “apps” e da “nuvem”, a qual diretamente “interfere na nossa forma de sentir, perceber e compreender o mundo” [a bio-semiótica chama isso de “expansão do Umwelt humano c.f. Jorge Albuquerque Vieira] (Griziotti 2014, Portanova 2013). Bratton define esses “apps” para plataformas como Android e Apple como interfaces ou membranas que ligam dispositivos individuais a uma database maior, armazenada na “nuvem” (centros de processamento de dados e armazenamento gigantescos que pertencem a grandes corporações) (Bratton, 2013). Essa continuidade topológica permitiu a difusão de aplicativos baixáveis – ou apps – que modulam cada vez mais a relação entre corpos e espaço. Tais tecnologias não apenas “grudam na pele e respondem ao toque” (como já colocou Bruce Sterling uma vez), mas criam novas “zonas” ao redor dos corpos, que agora se movem através de “espaços codificados”, sobrepostos de informação, capaz de localizar corpos e lugares dentro de mapas interativos, informacionais e visuais. Novos ecossistemas espaciais emergentes do cruzamento entre o “natural” e o artificial permitem a ativaçãoo de um processo de co-criação caosmótica da vida urbana (Iaconesi e Persico, n.d.). Aqui, novamente, é possível ver como apps são para o capital apenas uma forma de “monetizar” e “acumular” dados sobre o movimentos dos corpos, enquanto os subsomem ainda mais rigidamente em redes de consumo e vigilância. Contudo, essa subsunção do corpo móvel sob o capital não implica que seja este necessariamente o único uso dessas novas affordances tecnológicas. Transformar a bio-hipermídia em componentes do “red stack” (o modo de reapropriação do capital fixo na era do social em rede) implica aproximar atuais experimentos com hardware (tecnologias shenzei de hackear celulares, maker movements etc) aptos a dar suporte a uma nova espécie de “apps imaginários” (pensemos, por exemplo, nos apps criados pelo coletivo artístico Electronic Disturbance Theatre, que permitem a imigrantes enganar controles de fronteira ou apps que localizam a origem de commodities, seus graus de exploração etc.)

Conclusão

Este pequeno ensaio, a síntese de uma pesquisa mais abrangente, pretende propor uma nova estratégia para a construção da infraestrutura maquínica do comum. A ideia fundamental é a de que as tecnologias da informação, que têm algoritmos como seu componente central, não constituem apenas uma ferramenta para o capital, mas constroem simultaneamente novas potencialidades para os modos neoliberais de governo e para os modos pós-capitalistas de produção. A questão aqui é abrir possíveis linhas de contaminação junto aos grandes movimentos de programadores, hackers e makers (fazedores) envolvidos num processo de recodificação da arquitetura das redes e das tecnologias da informação baseadas em outros valores, que não a troca e a acumulação, mas também levando em consideração o processo generalizado de letramento sócio-técnico que tem afetado grande parte da população mundial. É uma questão, portanto, de produzir uma convergência capaz de estender o problema da reprogramação da Internet para além das tendências recentes de corporatização e monetização, às custas da liberdade e pelo controle dos usuários. Uma convergência que ligue a comunicação bio-informacional a assuntos como a produção de um dinheiro do comum, capaz de socializar a riqueza, contra tendências correntes rumo à privatização, acumulação e concentração, afirmando que as redes sociais e as competências comunicacionais difusas podem funcionar como uma maneira de organizar a cooperação e produzir novos saberes e valores. Significa buscar uma nova síntese política que nos leve para longe do paradigma neoliberal do débito, da austeridade e da acumulação. Isto não é uma utopia, mas um programa para a invenção dos algoritmos sociais constituintes do comum.

Primeiro Cinema

Abaixo, alguns marcos da história do cinema, referência dos procedimentos de linguagem de que falamos na 1ª aula:


Grandma’s reading glass, 1900
Uma primeira estrutura de olhar-coisa olhada, ponto de vista, close up, ainda justificada pela máscara/lente


Stop Thief! 1901
Um dos primeiros “filmes de perseguição”, ainda sem a regra de eixo de direção de movimento.


Life of an American Fireman, 1903
Uma das primeiras tentativas de montagem paralela, ainda tateante.


The Great Train Robbery, Edwin S. Porter, 1903
A linguagem já começa a se sistematizar: montagem paralela, planos de detalhe, campo/contracampo. Mas… onde colocar aquele close up frontal no final???


The Girl and her Trust, D.W. Griffith, 1912
O “grau zero” da linguagem já praticamente estabelecido.